Os pesquisadores da ETH Zürich desenvolveram uma inovação revolucionária na produção de chocolate - reciclando todo o fruto da planta do cacau, em vez de partir apenas dos grãos, que expressam aproximadamente 25% - sem a necessidade de adição de açúcar. (1) Uma análise aprofundada.
1) Chocolate suíço, tradição e inovação
A inovação da Politécnica Federal de Zurique segue o rumo de uma tradição em que a Suíça sempre se destacou nas pesquisas sobre produção de chocolate e derivados de cacau.
Já no 1879 Rudolf Lindt – inventor e fundador da indústria homônima – descobriu como dar ao chocolate uma consistência suave e homogênea, através da mistura contínua da massa de cacau em alta temperatura. E foi justamente essa técnica que rendeu um grande lucro à fábrica, que foi vendida junto com a marca para a concorrente Sprüngli, 20 anos depois.
Pesquisa em análise (Mishra et al., 2024), por sua vez, já atraiu o interesse de indústrias históricas, como a própria Lindt & Sprüngli e a La Bonbonnière Chocolaterie (1821). De Zurique a Genebra, passando por Gana.
2) Cacau, a doçura natural do suco
Doçura natural O suco de cacau, que contém 14% de açúcar e tem sabor frutado levemente ácido, é a chave da inovação lançada por Kim Mishra, coordenador do grupo de pesquisa do ETH Zürich, o Instituto Federal de Tecnologia de Zurique.
O suco é concentrado e misturado à polpa e ao endocarpo seco e moído, rico em pectinas, para formar um gel de cacau.
O gel naturalmente doce - bem como, presumivelmente, uma fonte de fibra alimentar e substâncias bioativas - é adicionado (a uma taxa <20% em peso) à massa de cacau. E é assim possível produzir chocolate sem os açúcares adicionados que a EFSA recomenda excluir da dieta, ou reduzir ao mínimo. (2)
3) Economia circular
Com quase 200 anos desde a produção da primeira barra de chocolate sólida (JS Fry and Sons, Reino Unido, 1830), Kim Mishra encontrou uma maneira de aproveitar também aqueles 75% do fruto do cacau que até agora era destinado ao desperdício, embora rico em nutrientes e fibra.
A economia circular feito através da reciclagem da polpa, endocarpo e casca, pode, portanto, permitir:
-reduzir uma 'perda alimentar' cuja quantidade seja pelo menos igual à dos grãos atualmente processados, considerando apenas a polpa (25% da fruta)
-aumentar os rendimentos da produção e, assim, reduzir a procura de novas culturas de cacau, que muitas vezes envolvem a desflorestação de florestas primárias. (3)
4) Cadeia de valor
Produção de chocolate com frutas inteiras também permite:
-recompensar maiores compensações aos catadores de cacau, graças ao preço reconhecido pela venda da polpa, e
-localizar a fase primária de transformação nos países de origem da matéria-prima. Então, em perspectiva
-promover a redistribuição do valor nos países de baixos rendimentos onde o cacau é cultivado e a dignidade dos rendimentos dos agricultores e trabalhadores envolvidos.
5) Sustentabilidade social, o exemplo da KOA
KOA – a startup da empresa B de Zurique que foi a primeira a seguir a investigação de Kim Mishra – iniciou a extracção de sumo de cacau no Gana, utilizando fábricas móveis, e a sua pasteurização numa fábrica local.
Seus fundadores conseguiram criar quase cem empregos em pouco tempo. E, acima de tudo, garantir aos catadores uma compensação adicional que possa ajudar a reduzir o flagelo do trabalho infantil na cadeia de abastecimento do cacau.
5.1) Preço justo, condições de pagamento, blockchain
O exemplo do KOA merece atenção em todas as cadeias de abastecimento agroalimentar, onde quer que estejam sedeadas, em vários aspectos:
-#preço justo. A compensação adicional reconhecida aos agricultores, em US$/t, é superior tanto à reconhecida pela Fairtrade International (+25%), como à certificada pela Rainforest Alliance (+339%. Ver figura 1)
Figura 1 – preço adicional pago pela KOA aos catadores de cacau (5)
-condições de pagamento. Os cobradores recebem pagamentos na entrega de cada pagamento individual. Como seria tão útil também na Europa (6)
-blockchain. As entregas e pagamentos são registados em tempo real com a tecnologia blockchain, graças à sinergia com a operadora local de telecomunicações MTN. (5)
Rastreabilidade da cadeia de abastecimento, práticas comerciais justas, protecção dos trabalhadores (incluindo sindicatos e segurança social, em perspectiva), transparência fiscal. Tudo o que falta em qualquer outro lugar do mundo, ou quase. (7)
6) Perspectivas
O trabalho realizado por Mishra et al. parece verdadeiramente valioso, também tendo em conta a “exploração” a partir da África Ocidental (Gana e Costa do Marfim), onde ocorre aproximadamente 80% da produção de cacau.
O impacto desta inovação, no mercado global do cacau e dos produtos dele derivados, pode ser extraordinária nos vários aspectos acima mencionados, aos quais se somam dois possíveis benefícios para os consumidores do planeta:
-segurança nutricional. O chocolate inovador tem um perfil nutricional certamente melhor que o chocolate tradicional, simplesmente pela ausência de açúcares adicionados
-possíveis benefícios para a saúde. Novos estudos poderão ser realizados para avaliar os possíveis benefícios à saúde associados ao consumo do novo produto, graças às fibras e diversos compostos bioativos
-acessibilidade. O ‘superalimento’, para além dos produtos gourmet do segmento premium, poderia permitir a disponibilização de chocolate a preços acessíveis, graças à maior disponibilidade de matérias-primas com os mesmos níveis de rendimento na agricultura.
7) Regulamentação de novos alimentos
Colocação no mercado da UE de chocolate a partir do fruto inteiro do cacau, exclusivo da União Europeia, postula a aplicação do Regulamento (UE) 2015/2283 sobre novos alimentos. Atualmente:
-os açúcares obtidos da polpa concentrada de Theobroma cacao L. por secagem - ou por purificação visando a obtenção de glicose e frutose de alta pureza - foram autorizados como novos alimentos na UE, desde 14.2.20, graças aos dossiês apresentados pela Nestec York Ltd e Cabosse Naturals NV (8)
-a polpa concentrada de Theobroma cacao L. também foi reconhecida na UE como alimento tradicional, não estando, portanto, sujeita a autorização prévia como novo alimento (9)
- a utilização de outras partes da fruta como ingredientes alimentares (ou seja, endocarpo, casca) exige a apresentação de novos dossiês, para efeitos de autorização como novo alimento, que deve preceder a comercialização na UE dos alimentos que os contenham.
O procedimento de autorização poderá ser simplificado se os requerentes conseguirem demonstrar uma tradição de utilização das referidas matérias-primas em países terceiros, mesmo através de literatura cinzenta. (10)
8) Regulamentações setoriais
A designação A definição do novo produto como 'chocolate' - como realmente merece, à luz da inovação tecnológica - exigirá também uma atualização da regulamentação setorial aplicada aos produtos de cacau e chocolate destinados ao consumo humano. Nomeadamente:
-a nível internacional, as normas do Codex Alimentarius para (i) chocolate e produtos de chocolate, (ii) massa de cacau (cacau) (cacau/licor de chocolate) e bolo de cacau, (iii) cacau em pó (cacau) e misturas secas de cacau e açúcares (11)
-na UE, Diretiva de Produtos de Cacau e Chocolate 2000/36/EC. (12)
9) Segurança alimentar e práticas agronómicas
Uma possível criticidade – e ao mesmo tempo uma grande oportunidade – está ligada às práticas agronômicas adotadas no cultivo do cacau. A valorização dos resíduos da cadeia de abastecimento agroalimentar, como já foi partilhado, é o principal caminho da inovação alimentar dos nossos tempos. (13,14).
o uso das partes mais externas do fruto, a começar pela casca e pelo endocarpo, pode, no entanto, aumentar a exposição dos consumidores a pesticidas e outros produtos fitofarmacêuticos, com possíveis riscos para a segurança alimentar e a saúde pública. Como se vê, por exemplo, no caso da banana. (15)
Atenção relativamente a estes aspectos, deverá, portanto, incentivar os operadores a converterem as culturas para o sistema biológico. Ainda mais tendo em conta as vantagens adicionais dos produtos biológicos para a saúde e o sistema imunitário. (16)
Dário Dongo
Note
(1) Mishra, Kim; Verde, Ashley; Burkard, Johannes; Gubler, Irina; Borradori, Roberta; Kohler, Lucas; Meuli, Johannes; Krähenmann, Ursina; Bergfreund, Jotam; Siegrist, Armin; Schnyder, Maria; Mathis, Alexandre; Fischer, Pedro; Windhab, Erich. (2024). A valorização dos resíduos do cacau melhora os aspectos nutricionais e de sustentabilidade do chocolate. Comida Natural. 5. 1-10. faça: 10.1038/s43016-024-00967-2
(2) Marta Strinati. O papel nocivo dos açúcares na dieta, opinião da EFSA. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 1.3.22
(3) KOA (Suíça), KOA Impact (Gana) https://koa-impact.com/team/
(4) Dário Dongo. Abuso infantil de cacau, ação coletiva nos EUA. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 6.1.24
(5) KOA. Impacto. Transparência radical https://tinyurl.com/3m2u7a6p
(6) Dário Dongo. Adeus fruta italiana. A crise e a solução. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 17.4.24
(7) Os benefícios da utilização da blockchain para agricultores e trabalhadores agrícolas foram ilustrados num relatório da FAO (2018), bem como em dois estudos científicos subsequentes realizados na Índia e na China. Ver notas 1,12,13 do artigo de Dario Dongo, Andrea Adelmo Della Penna. Blockchain, as oportunidades para as cadeias de suprimentos agroalimentares e orgânicas. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 1.11.20
(8) Regulamento de Execução (UE) 2020/1634 da Comissão, de 4 de novembro de 2020, que autoriza a colocação no mercado de açúcares obtidos a partir da polpa de cacau (Theobroma cacao L.) como novo alimento ao abrigo do Regulamento (UE) 2015/2283 https://tinyurl.com/3r4mvua8
(9) Reg. (UE) n.º 2020/1634, enquanto 7
(10) Dário Dongo. Nãootificação de alimentos tradicionais de países terceiros, como os novos alimentos na UE. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 4.3.22
(11) Comitê do Codex sobre Produtos de Cacau e Chocolate (CCCPC) https://tinyurl.com/nxu8a7hx
(12) Diretiva 2000/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos produtos de cacau e de chocolate destinados ao consumo humano. Último texto consolidado 18.11.23 https://tinyurl.com/yc7a2sj7
(13) Dário Dongo. Upcycling, principal caminho de pesquisa e inovação. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 1.1.2023
(14) Dario Dongo, Andrea Adelmo Della Penna. Reciclagem de coprodutos e resíduos alimentares, breve revisão científica. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 12.1.24
(15) Marta Strinati, Dário Dongo. Agrotóxicos em polpa de banana, sempre orgânicos ilesos. O teste K-Tipp. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 15.9.20
(16) Dario Dongo, Andrea Adelmo Della Penna. Alimentos orgânicos e o sistema imunológico, evidências científicas. GIFT (Grande Comércio de Alimentos Italianos). 11.4.20
Legenda: Imagine a capa de Mishra, K., Green, A., Burkard, J. et al. A valorização dos resíduos do cacau melhora os aspectos nutricionais e de sustentabilidade do chocolate. Nat Food 5, 423–432 (2024). https://doi.org/10.1038/s43016-024-00967-2
Dario Dongo, advogado e jornalista, doutor em direito alimentar internacional, fundador da WIISE (FARE - GIFT - Food Times) e da Égalité.